O que é câncer?

Quando escutamos a palavra “câncer” é quase impossível não sentir um calafrio. E apesar de ser uma doença muito conhecida, o que é câncer e como ele funciona não é extremamente claro a todos. Por isso vamos tentar explicar aqui a ideia básica de câncer e como ele é formado.

ENTÃO, O QUE É CÂNCER?

Como definimos previamente (aqui) nosso corpo é feito de células. As células se dividem conforme nosso corpo cresce, para reparar tecidos e órgãos ou para substituir células danificadas. A multiplicação celular é estritamente regulada e uma célula só consegue se dividir um determinado número de vezes. E para garantir que isso seja seguido existem vários mecanismos de controle que garantam que a divisão celular ocorra sem problemas: Ou seja, que uma célula só se divida quando ela precisa mesmo e que ela não se reproduza sem parar. Mas as vezes esses mecanismos falham. 

Quando uma célula “foge” dessa regulação, se tornando fora de sincronia com o resto das células do corpo, ela começa a se dividir de forma descontrolada. O corpo tem mecanismos para consertar isso (Incluindo o sistema imune) mas às vezes uma célula descontrolada pode formar um tumor canceroso, comumente definido como uma massa de células se dividindo descontroladamente.  E percebam que foi mencionado o tumor canceroso. Por que  temos que ter essa distinção? Bem, enquanto tumor e câncer são termos usados de forma alternada, eles não são a mesma coisa. Um tumor é definido como uma massa anormal de células [1] e não é necessariamente cancerígeno. Com isso há a distinção de tumor benignos, que não são capazes de se espalhar pelo corpo e ameaçar a sua saúde, e os tumores malignos, ou tumores cancerígenos, também conhecidos simplesmente como câncer e que possuem a capacidade de “tomar” outros órgãos e tecidos. Para facilitar, quando mencionarmos tumores, estaremos nos referindo aos malignos, a não ser que especifiquemos.  

O QUE LEVA UM TUMOR A SE TORNAR MALIGNO?

Com a divisão entre benignos e malignos feita, sendo a capacidade de se replicar infinitamente e sem controle a característica principal dos cânceres. Entretanto pesquisas nas últimas décadas no campo da oncologia (o campo responsável por estudar câncer) revelaram que tumores são muito além de massas de células replicando-se descontroladamente. Eles tem muitas outras “capacidades” que os ajudam a sobreviver no corpo (O que os fazem muito difíceis de tratar). Essas capacidades foram sumarizadas e são conhecidas como as seis marcas do câncer [2,3]:

  • Proliferação crônica. Como já mencionado anteriormente as células cancerosas são experts em escapar dos mecanismos de controle que previnem elas de se dividir descontroladamente. Essa desregulação é causada por mutações que alteram o material genético (DNA) das células, ou seja, reescrevem o manual de instrução das células.
  • Evasão de mecanismos de supressão de crescimento. Como mencionado anteriormente, proteínas são as “trabalhadoras” da célula. Existem proteínas, como a TP53 ou a RB, que tem a função de controlar o progresso do ciclo celular (A série de passos organizados que leva ao desenvolvimento e divisão celular). Se essas proteínas são alteradas, como ocorre geralmente em tumores, células que iriam parar de crescer continuam a se dividir e reproduzir. 
  • Resistência a morte celular. Feito nos, células podem também “envelhecer” e perder algumas de suas qualidades até que elas atinjam o ponto em que devem ser substituídas para manter nosso organismo saudável. Morte celular é estritamente controlada pelo processo de “Morte celular programada”, um processo que células cancerosas escapam.
  • Imortalidade. Células humanas normais podem se dividir um número limitado de vezes, conhecido como o limite de Hayflick [4]. Uma forma de rastrear o número de divisões séria por dar um sinal na célula toda vez que ela se dividisse. E isso na verdade já acontece: O DNA, chamado informalmente de manual de instruções da célula, é estruturado em 23 pares de “manuais” chamados de cromossomos, que são copiados a cada divisão celular. As extremidades de um cromossomo são chamadas de telômeros e são bem difíceis de serem replicadas, então toda vez que a célula se cópia os telômeros diminuem; Quando seu tamanho diminui até um certo ponto a célula não consegue se dividir mais. Células tumorais possuem uma proteína chamada telomerase que previne a diminuição dos telômeros e ajudam a célula a se dividir bem além do limite de Hayflick. 
  • Indução de angiogênese. O ambiente tumoral favorece o desenvolvimento de vasos sanguíneos que vão providenciar as células cancerosas com nutriente e oxigênio e vão remover os resíduos produzidos – Tal processo de desenvolvimento dos vasos sanguíneos é chamado de angiogênese. Então, metaforizando, as células tumorais vão viver em um resort 5 estrelas de Porto de Galinhas, onde os funcionários trabalhando exaustivamente para as agradar vão ser algumas proteínas (Como a VEGF-A) e alguma células (Como os Pericitos)
  • Invasão. Células normais estão “grudadas” uma na outra por meio de moléculas de adesão, como a E-cadherin. Entretanto, células cancerosas passam por vários processos até adquirirem a capacidade de se “soltarem” e então viajarem para diferentes partes do corpo onde elas podem se reproduzir e induzir mais tumores. Esse processo é conhecido como metástase e é o que determina a mudança de categoria de um tumor benigno para um maligno. 

E mesmo que isso pareça ser uma lista exaustiva das característica do câncer, ainda existem coisas que não sabemos e que conforme aprendemos, se tornam outras marcas para o câncer e são adicionadas a lista [3]. As últimas marcas adicionadas são: Reprogramação da utilização de energia para beneficiar o crescimento e divisão de células tumorais (Onde as células se reprogramam para consumir mais energia e gastar mais energia crescendo) e a Evasão do sistema imune já que se isso não acontecesse o nosso sistema imune destruiria essas células malignas. 

Essas marcas são características que células cancerosas adquirem e que as diferenciam de células saudáveis. No começo, células de um ou mais diferentes tipos começam a formar o tumor através de sua replicação e por formar mais células (Cancerosas) [5]. As células tumorais podem se dividir sem limite, então uma célula “rebelde” pode ser o suficiente para formar um tumor (Origem monoclonal). Entretanto, existe evidência que cânceres podem ser formados por múltiplas células que acumulam mutações (origem policlonal) [5]. Independente se sua origem é monoclonal ou policlonal, instabilidade genética [6] vai facilitar a acumulação de mutações em células já tumorais e vai promover a aparição de novas subpopulações [3]. Como resultado, o tumor vai ter várias subpopulações e diferentes tipos celulares envolvidos. As diferentes células em um tumor e suas interações vão constituir o que é chamado de microambiente tumoral [3,6], este que possui um importante papel em ditar como um tumor responde ao tratamento.

DESCRIÇÃO DO MICROAMBIENTE TUMORAL E OS DIFERENTES TIPOS CELULARES QUE FAZEM PARTE DELE. FONTES: HANAHAN AND WEINBERG (2011)

POR QUE TEMOS TUMORES?

Mas como que isso ocorre? Existem vários mecanismos que podem iniciar o crescimento de um tumor maligno. O primeiro de todos são as mutações no DNA, ou seja, mudanças no manual de instruções das células tumorais. Mutações podem contribuir para a desregulação de vários processos e causam variabilidade entre tumores, complicando o tratamento já que tumores causados por diferentes mutações vão responder de forma diferente ao tratamento. O segundo é o nosso próprio Sistema Imune, que mesmo lutando arduamente para nos proteger de patógenos e até de câncer, pode falhar e as vezes pode até auxiliar no desenvolvimento de um tumor [7]. Porém o papel do sistema imune no desenvolvimento do câncer ainda não foi completamente compreendido. A terceira causa seria a ação de alguns vírus (Como o Vírus do Papiloma Humano, que causa câncer de colo de útero) e bactérias. E por último, alguns cânceres são associados a genes específicos que podem ser herdados (Como por exemplo, alguns tipos de câncer de mama).

TRANSFORMAÇÃO DE UMA CÉLULA SAUDÁVEL A UMA CÉLULA CANCEROSA DEVIDO A DIFERENTES ESTÍMULOS.

POR QUE CÂNCER É TÃO DIFÍCIL DE TRATAR?

Um importante aviso que temos que dar é que câncer não é uma única doença. Cada câncer é único. E por isso o tratamento é muito difícil. Já explicamos os motivos por que há tanta variedade, mas podemos os resumir em: Primeiramente, a biologia molecular de um tumor é bastante complexa e não sabemos tudo sobre ela. Isso significa que dois tumores no mesmo órgão (Exemplo: câncer de pulmão) podem funcionar de maneiras um pouco ou até totalmente diferentes. Além disso o tumor vai ser diferente dependendo do que o causou (Mutações diferentes causam tumores diferentes). E para deixar essa conta mais complicada, o perfil genético de uma pessoa também influencia como ela vai responder a tratamento. Uma das formas de lidar com isso pode ser com Medicina personalizada [8].

Então, precisamos de diferentes tratamentos para diferentes tumores e mesmo assim o resultado para diferentes pacientes com o “mesmo” tipo de câncer pode ser muito diferente e a sensibilidade de diferentes tratamentos não é a mesma.

O TEXTO EM AZUL INDICA AS DIFERENTES MARCAS QUE A CÉLULA CANCEROSA RECEBE. O TEXTO NAS DIFERENTES CAIXAS EXEMPLIFICAM DIFERENTES TIPOS DE MEDICAMENTOS QUE PODEM SER USADOS PARA ATACAR TAIS MARCAS. FONTE:  HANAHAN AND WEINBERG (2011) [3]

Outro problema com o tratamento de câncer e que a maioria dos medicamentos focam em matar células tumorais. Entretanto, sendo tumorais ou não, células são células então é difícil desenvolver drogas que matam apenas células “más” e não as células saudáveis. Isso não significa que o paciente com câncer não deve seguir o tratamento prescrito pelos médicos, mas é um lembrete que é importante sempre procurar por tratamentos melhores e mais seletivos. 

Nesse momento você deve estar pensando que o câncer é algo super complicado e que é super difícil você encontrar uma cura para ele. Porém existem razões para ser otimista. Mesmo que nosso corpo às vezes falhe em controlar o câncer, existem vastas pesquisas científicas sobre o assunto e vários tratamentos e novas estratégias estão em desenvolvimento. Ainda há um longo caminho pela frente e podemos até encontrar soluções para tipos específicos de câncer (Exemplo: A cura da leucemia mielóide crônica [9]) do que uma cura geral e milagrosa para todos os cânceres, mas a ciência continuará procurando uma solução e caminhando nessa longa trilha. 

REFERÊNCIAS:

  1. The Sol Goldman Pancreatic Cancer Research Center (http://pathology.jhu.edu/pc/BasicTypes1.php)
  2. The Hallmarks of Cancer (https://doi.org/10.1016/S0092-8674(00)81683-9)
  3. Hallmarks of Cancer: The Next Generation (https://doi.org/10.1016/j.cell.2011.02.013)
  4. https://en.wikipedia.org/wiki/Hayflick_limit
  5. Many different tumor types have polyclonal tumor origin: evidence and implications (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/18614394/)
  6. The tumour microenvironment (https://www.nature.com/collections/khylqkxqbr)
  7. Roles of the immune system in cancer: from tumor initiation to metastatic progression (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6169832/)
  8. The Age of Personalized Medicine (http://www.personalizedmedicinecoalition.org/Userfiles/PMC-Corporate/file/pmc_age_of_pmc_factsheet.pdf)
  9. How I treat chronic myeloid leukemia in the imatinib era (https://doi.org/10.1182/blood-2007-04-038943)
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