O Dogma Central da Biologia Molecular

A biologia pode soar como um assunto realmente vasto e complicado para muitas pessoas. E, em muitos aspectos, ela é. Entretanto, uma grande parte do conhecimento em biologia, ou pelo menos em biologia molecular, se desenvolve a partir de um princípio muito simples que chamamos de “o dogma central da biologia molecular” – principalmente porque soa bem :P.

Este dogma central foi pensado em 1957 por Francis Crick [1]. É a teoria que explica como funciona a vida, desde pequenas bactérias, passando por plantas e animais, até os seres humanos. Há diferenças entre organismos, mas a ideia principal é a mesma para todos. Para explicar o tema, vamos exemplificar como esse processo funciona nos seres humanos, só porque é mais fácil se identificar com isso.

Nossos corpos são formados por células. Nossos ossos, músculos, cérebro, etc., são todos formados de células. As células de diferentes partes do corpo podem ser bem diferentes umas das outras (mas isso pode ser discutido em outro post!). No entanto, todas elas têm alguns componentes básicos e um deles é o núcleo, que contém o DNA.

Todas as informações que um organismo precisa para funcionar estão contidas nestas moléculas de DNA (ou moléculas de ácido desoxirribonucleico), de modo que você pode pensar nisso como o manual de instruções para as células. O DNA é codificado com um alfabeto de quatro letras que é suficiente para sustentar todas as formas de vida! Entretanto, antes de poder interpretar a informação, a célula precisa mudá-la para um formato diferente e mais acessível: O RNA (ácido ribonucleico). A transformação do DNA para o RNA é chamada de transcrição. Você pode pensar nisso como “reescrever” uma parte específica do manual que é necessária no momento e enviá-la como uma ordem ou uma tarefa. Então, o RNA deixa o núcleo e é lido por pequenas organelas celulares chamadas ribossomos, que produzem proteínas de acordo com as instruções contidas no RNA. O processo de formação de proteínas é chamado de tradução e pode ser entendido como a tradução literal de informações de um idioma (RNA) para outro (linguagem das proteínas). A linguagem das proteínas consiste em 20 “letras” conhecidas como aminoácidos. Os aminoácidos montados e dobrados compõem as proteínas que realizam o trabalho real. Por exemplo, nossos músculos se contraem graças à ação de duas proteínas (actina e miosina).

Living beings are made by cells: Seres vivos são compostos por células; Cells: Células; DNA; RNA; Protein: Proteína; Nucleous: Núcleo;

O dogma central da biologia molecular foi uma revolução que mudou a maneira como entendemos a vida [1]. Pela primeira vez, os cientistas entenderam as relações entre as moléculas mais abundantes (DNA, RNA e proteínas). Entretanto, esta teoria era bastante especulativa na época, e a transcrição e tradução são mais complexas do que nossa versão simplificada.

Crick, criando sua teoria, mencionou uma exceção – o retrovírus (por exemplo, HIV: vírus da imunodeficiência humana). Naquela época, ele não sabia exatamente os mecanismos moleculares deste processo, mas acabou que ele estava certo em sua proposição [1].

Os retrovírus utilizam o RNA como seu material genético básico e podem copiar as informações do RNA para o DNA, em um processo chamado transcrição reversa [2]. Este processo transforma o material genético viral (RNA) em DNA. Graças a essa estratégia, o vírus consegue entrar e sequestrar a maquinaria da célula para se multiplicar.

A replicação é o processo no qual ocorre a formação de duas cópias idênticas de DNA a partir de uma molécula de DNA mãe. À medida que crescemos, o número de células em nosso corpo aumenta. Para que as células façam seu trabalho corretamente, o manual de instruções (DNA) deve ser transmitido para cada nova célula. A replicação [3], [4] assegura a multiplicação do número de cópias de DNA para que cada célula possa obter uma. O dogma central afirma que o DNA é a principal molécula replicadora, embora o RNA também possa ser replicado (como nos retrovírus, mas o processo também poderia desempenhar um papel nos seres humanos [5]). De acordo com a teoria de Crick, as proteínas não são replicáveis. As células não podem fazer uma proteína baseada em outra proteína – elas sempre precisam de RNA. Tomadas em conjunto, podemos atualmente resumir o dogma central da biologia molecular da seguinte forma (linhas tracejadas indicam processos menos comuns):

DNA; Replication: Replicação; Transcription: Transcrição; Reverse transcription: Transcrição reversa; RNA; Translation: Tradução; Proteins: Proteínas;

A biologia está cheia de surpresas e fenômenos inesperados continuam a aparecer. Em alguns casos, sua interpretação pode parecer contraditória ao dogma central. Por exemplo, os príons [6]: estas proteínas dobradas incorretamente podem mudar a forma das proteínas “normais” já existentes. Elas são responsáveis por muitas doenças [7], tais como a doença da vaca louca. Alguns cientistas os veem como uma forma de replicar informações a nível proteico [6]. 

Outro exemplo vem da epigenética – campo da ciência que estuda mecanismos de controle da expressão gênica, sem alterar a seqüência do DNA (você pode imaginar como dando ou tirando acesso a algumas partes de nosso manual de instruções). Um desses mecanismos são as proteínas que podem controlar o fragmento de DNA que é realmente expresso (ou seja, usado pela célula), os éxons. Este exemplo pode ser utilizado para argumentar que o dogma central original não ocorre de maneira estática e em uma ordem específica [8]. Por essas questões, o consenso científico ainda não foi alcançado mas o dogma central continua a ser a principal chave para a nossa compreensão da vida em seu nível molecular.

O dogma central não é importante apenas para a biologia, mas também para entender o nome do nosso blog! Assim como algumas moléculas que ocupam-se em decodificar a informação de transferência celular do DNA, para que possa ser entendida pelos ribossomos, nosso blog tem como objetivo explicar a ciência de uma maneira simples, para que possa ser entendida por todos. Portanto, nos vemos como “O Transcriptoma” (o conjunto de todas as moléculas de RNA dentro da célula). A única diferença é que ao invés de informações do DNA, colocamos a ciência em um formato acessível!

Referências:

 1.        Cobb, M. 60 years ago, Francis Crick changed the logic of biology. PLOS Biology 15 (2017).

2.         Fang, J.M.C.a.H. The Discovery of Reverse Transcriptase. Annual Review of Virology 3, 29-51 (2016).

3.         Cooper, G.M. in The cell: a molecular approach, Edn. 2nd (Sunderland(MA): Sinauer Associates, 2000).

4.         Pray, L.A. Major Molecular Events of DNA Replication. Nature Education 1 (2008).

5.         Ahlquist, P. RNA-Dependent RNA Polymerases, Viruses and RNA silencing. Science 296, 1270-1273 (2002).

6.         Reid, M.D.Z.a.C. A brief history of prions. Pathogens and Disease 73 (2015).

7.         Geschwind, M.D. Prion Diseases. Continuum (Minneapolis, Minn.) 21, 1612-1638 (2015).

8.         Koonin, E.V. Does the central dogma still stand? Biology Direct 7 (2012).

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